sábado, 28 de novembro de 2009

Na FSP de hoje

ANTONIO CICERO

Sobre a lei contra a homofobia

A aprovação dela representará um passo para tornar o Brasil um país mais civilizado

ENCONTRA-SE em tramitação no Senado Federal o projeto de lei (PLC 122/ 2006) que pune a discriminação baseada na orientação sexual ou na identidade de gênero do cidadão. A aprovação dessa lei representará sem dúvida um passo para tornar o Brasil um país mais civilizado.

Por que digo "civilizado"? Porque civilizado é quem se opõe à barbárie e a deixa para trás. Ora, o bárbaro é aquele que, guiando-se por preconceitos jamais questionados, não tolera, no universo das possibilidades vitais dele mesmo e dos demais membros da sua comunidade - ou até da humanidade - qualquer comportamento alternativo: aquele que busca impor, a ferro e fogo, a sua maneira de ser a todos os demais, tentando escravizar ou eliminar aqueles que não se conformem.

Em oposição a isso, civilizado é quem é capaz de fazer uso da razão para criticar todos os preconceitos, inclusive aqueles em que foi criado. No fundo, a civilização é o ceticismo metódico. O civilizado sabe que é por acaso -porque por acaso nasceu neste e não naquele país, nesta e não naquela classe social, nesta e não naquela família- que cada qual tem os hábitos, os valores, as crenças, os preconceitos que tem; sabe, portanto, que nenhum conjunto de preconceitos é, por direito, superior a nenhum outro. Sabendo disso, o civilizado sabe também que o único motivo que pode racionalmente ser invocado para negar a alguém o direito a se comportar de determinada maneira é que tal comportamento feriria os iguais direitos de outras pessoas.

Pois bem, o fato de que uma pessoa manifeste determinada orientação sexual não impede que outras pessoas manifestem outras orientações sexuais ou que exerçam qualquer outro direito legítimo. Consequentemente, trata-se de um direito inquestionável. Ora, a lei em questão tem o sentido de garantir a cada qual o exercício pleno desse direito. Ela visa garantir que a orientação sexual ou a identidade de gênero de uma pessoa não a sujeite -como tão frequentemente ocorre hoje- a sofrer discriminação, agressão verbal, violência física ou mesmo assassinato, enquanto seus agressores gozem de impunidade. Nisso reside seu sentido civilizatório.É claro que a barbárie, na forma, por exemplo, do fanatismo de zelotes ou fundamentalistas religiosos, não deixa de apelar a todo tipo de sofisma para tentar desclassificar esse projeto de lei.

Semelhante sofisma é, por exemplo, a tese de que o sexo não reprodutivo contraria uma pretensa lei natural. Já falei sobre tal "lei" noutro artigo, mas não posso deixar de me repetir neste ponto. É um erro confundir as leis da natureza, que são descritivas, isto é, dizem o que realmente acontece, com as leis humanas, que são prescritivas, isto é, dizem o que deve (ou não deve) ser feito. A lei da gravidade, por exemplo, não diz que todos os corpos que têm massa devem se atrair de determinado modo e sim que se atraem desse modo. Se for descoberto que determinados corpos têm massa e, no entanto, não se atraem do modo previsto, não serão esses corpos que estarão errados, mas a lei da gravidade. Assim também, se uma "lei natural" diz que os indivíduos do mesmo sexo não sentem atração erótica uns pelos outros, basta abrir os olhos para ver que essa "lei" está errada, ou melhor, não é lei, não existe.

De todo modo, tanto a física contemporânea quanto a lei da evolução das espécies já mostraram que a natureza está em constante mutação. O ser humano mesmo talvez seja a mais radical dessas mutações, de modo que não apenas a espécie humana mas cada indivíduo humano é quase infinitamente capaz de mudar a si próprio, capaz de experimentar o que nunca antes se experimentou, capaz de criar o que nunca antes existiu. Substituindo o instinto pela experimentação, o ser humano já há muito foi capaz de separar radicalmente sexo de reprodução. Diante de tudo isso, a invocação de uma "lei natural" para tentar tolher o seu comportamento é simplesmente ridícula.

Finalmente, é falso que a lei em questão restringiria a liberdade de expressão simplesmente porque proibiria praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito contra orientação sexual ou identidade de gênero. Afinal, a lei 7.716 (Lei Caó) já faz exatamente isso em relação a raça, cor, etnia, religião e procedência nacional e não é considerada prejudicial à liberdade de expressão.Esperemos que o Senado Federal, rejeitando o fanatismo e a barbárie, escolha para o Brasil o caminho da razão e da civilização.

a.cicero@uol.com.br

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Mouffe

Feminismo e filosofia política em Chantal Mouffe

*Josadac Bezerra dos Santos

Em “O Regresso do Político”, coletânea de ensaios da própria autora, o feminismo enquanto corrente teórica no pensamento da filósofa Chantal Mouffe (1996), aparece associado a uma corrente do pensamento político. Mouffe faz uma distinção entre o que ela chama de “a política” e “o político”. Na primeira expressão a referência é ao mundo da política entendido como a organização institucional do Estado e das instituições representativas tais como partidos políticos, sindicatos, igrejas, associações de classe, entre outras. Na segunda, a referência é a uma compreensão teórica segundo a qual a sociedade estaria pulverizada por uma diversidade de situações de conflito e de relações de opressão, onde se evidencia a luta pela igualdade e/ou liberdade em determinados pontos do social, numa clara indicação de que o projeto político moderno elaborado pelo liberalismo falha no propósito de estender, a todos e a todas, tais benefícios.

A contribuição específica de Mouffe vem do que ela entende por “democracia radical”, e de suas reflexões sobre a relação amigo/inimigo em política. A autora parte da noção de C. Schmitt para quem o fundamento do conflito político se encontra na existência de um elemento de hostilidade entre os seres humanos, evidenciado em nossas sociedades modernas pela manifestação de uma diversidade de relações sociais as mais diferentes, onde tais conflitos acabam aparecendo. Ora, ao reconhecer a natureza necessariamente diversificada das relações sociais, e nelas as condições de possibilidade do surgimento de conflitos em determinados lugares do social, Mouffe estabelece as bases para a defesa de sua teoria política que, ao contrário da perspectiva liberal, sustenta a importância do dissenso numa sociedade democrática. A este reconhecimento Mouffe chamou de “pluralismo agonístico”. A natureza radical da democracia estaria, portanto, na inerradicabilidade do antagonismo (MOUFFE, 2003).

Em relação ao conceito de identidade, pelo menos três características precisam estar claras: a primeira é o caráter relacional inerente às identidades. Toda identidade constrói-se na relação com o outro. No conflito político, o “eu” só existe como diferença do “outro”. O “eu” (particularismo), tende a associar-se a outros, construindo-se assim um “nós”, que por sua vez tende a se opor a um “outro” que se articula a outras particularidades, formando um “eles”. É neste momento que “o político” aparece ontologicamente no processo social (LACLAU, 2006).
A segunda característica da concepção de identidade em Laclau e Mouffe é o antiessencialismo. Este é a negação da existência de um fundamento único, de caráter universal e de natureza permanente. E a terceira seria o descentramento do sujeito, como explicitado Stuart Hall (2004), em virtude do reconhecimento de que também não é possível falar-se em um sujeito universal completamente transparente, o que por sua vez implica em admitir-se a existência de posições de sujeito (LACLAU, 2006). Isto significa que agentes sociais são portadores de diferentes posições de sujeito em situações diferentes na sociedade, o que acaba não permitindo que qualquer dessas posições torne-se completamente fixa, a não ser temporariamente e de forma precária.

Assim, para Mouffe não é possível falar-se da categoria “mulher” nem enquanto sujeito universal, nem enquanto uma identidade essencial do feminismo. Aliás, essa rejeição radical a qualquer essencialismo tem sido um dos marcos mais relevantes do seu pensamento em relação às outras concepções teóricas feministas, uma vez que a sua principal crítica às demais correntes consiste em afirmar que às diversas teorias feministas preservam algum tipo de essencialismo. Mais do que isso, um essencialismo pré-existente aos conflitos inerentes à própria construção das identidades, o que na sua visão impossibilita a resolução do problema fundamental apontado pelo movimento feminista: a desigualdade entre os sexos e a situação de opressão em que em muitas situações se encontram as mulheres.

A solução apontada por Mouffe passa, então, pelo que ela entende ser o caminho possível para um feminismo conseqüente politicamente: o reconhecimento de que a luta das mulheres se assemelha a outras lutas de outros movimentos que buscam pelo mesmo valor político em muitas situações conjunturais concomitantes, sempre de caráter contingente e precário; e que só através de uma prática política articulatória entre uma variedade de movimentos que estejam lutando por algum significado particular de liberdade e/ou igualdade, é que se torna possível falar-se de um movimento feminista.

Breves considerações práticas

Um exemplo do que estamos afirmando, pode ser percebido na leitura do “Manifesto sobre a Campanha da Fraternidade 2008 - Considerações de Católicas sobre a Defesa da Vida”, recentemente divulgado pelas Católicas pelo Direito de Decidir, uma ong feminista formada por teólogas e sociólogas católicas que defende a legalização do aborto a partir da condição de mulheres católicas. No referido manifesto há alusões explícitas à eutanásia, um tema pouquíssimo debatido no país, mas, incorporado ao discurso das Católicas pelo Direito de Decidir porque embora tenha particularidades que o diferenciam em muito do discurso sobre a defesa do aborto, o discurso sobre a defesa eutanásia tem um elemento que o remete ao discurso pela defesa do aborto: o direito de decidir.

O apoio das Católicas pelo Direito de Decidir à luta dos homossexuais, por exemplo, é também uma demonstração concreta desta prática articulatória. As Católicas pelo Direito de Decidir são presença certa nas paradas pela diversidade sexual que ocorre periodicamente na cidade de São Paulo. Mas uma vez, pode-se perceber que a particularidade do movimento GLBTT não impede que tal movimento receba o apoio político das Católicas pelo Direito de Decidir, uma vez que todos esses discursos defendem politicamente o direito de decidir. Às mulheres o direito de decidir sobre seus corpos e sobre a sua capacidade reprodutiva; aos que sofrem e perderam qualquer sentido de dignidade da vida, o direito de decidir sobre o fim de suas funções biológicas vitais e, aos homossexuais e outros grupos alternativos no campo da sexualidade, o direito de decidir sobre suas sexualidades, e assim por diante.

Para que se reconheça a situação de conflito e, consequentemente o dissenso inerente às democracias modernas, é preciso lembrar que existe na sociedade brasileira, hoje, uma prática política articulatória que reúne alguns discursos particulares que se unem em favor de um outro significante: o direito à vida em oposição ao direito de decidir. O discurso oficial da Igreja Católica pelo direito à vida encontra receptividade dentro da esfera religiosa, tanto em igrejas protestantes históricas quanto no espiritismo; e fora da esfera religiosa entre homens de mentalidade machista, grupos políticos conservadores, e discursos jurídicos fundamentados nas fontes tradicionais do direito, seja no que se refere ao aborto, à eutanásia ou na questão da diversidade sexual, sempre na defesa da negação da autonomia desses sujeitos que assumem posições opostas à visão hegemônica na nossa sociedade.

Conclusão

Concluí-se, pois, que para Mouffe o feminismo só se constitui em um movimento político conseqüente fazendo parte de uma ação articulatória mais ampla que, associado a uma cadeia de equivalências formada por outros movimentos cujo discurso aponte para situações de opressão, lute por liberdade e/ou igualdade na busca pela democracia em lugares pontuais do social, onde estes valores políticos não estejam total ou parcialmente presentes.

Pelo menos em grande parte, excluí-se também a possibilidade de que Chantal Mouffe apresente uma teoria social exclusivamente feminista, como o fazem outras autoras, uma vez que suas concepções sobre a revolução do nosso tempo, implicam em que se terá necessariamente de construir um projeto político mais amplo em torno de muitas situações pontuais do social, associadas a outras muitas situações particulares, na construção de uma hegemonia, que inverta a situação encontrada.

*É doutor em Sociologia e professor de Ciência Política do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe - UFS. josadac@oi.com.br

retirado de http://www.fatimacleide.com.br/?p=2257

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A Tarde de hoje

O jornal A Tarde desta segunda-feira, dia 9 de novembro, destacou o lançamento do livro do professor Eduardo Leal Cunha, que ocorre na próxima quarta, dia 11, às 17h, no auditório da Facom/UFBA. Além de uma entrevista, o jornal publicou uma resenha do livro, escrita pelo professor Leandro Colling, do IHAC (leia textos abaixo).

O lançamento é promovido pelo Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade, pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciências professor Milton Santos (IHAC), pela Faculdade de Comunicação e pelo Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT). O evento foi aprovado como atividade de extensão do IHAC e, por isso, serão emitidos certificados aos inscritos. As inscrições poderão ser realizadas na hora.

No lançamento do livro, o psicanalista e professor da Universidade Federal de Sergipe, Eduardo Leal Cunha, fará a conferência Identidade, ética e subjetivação no mundo contemporâneo, seguida de coquetel.

Leia a entrevista e resenha publicados no jornal A Tarde de hoje:

NÃO PODEMOS NOS ORGULHAR DOS NOSSOS PRECONCEITOS

Eduardo Leal Cunha

CÁSSIA CANDRA

Partindo de um aparentemente despretensioso “quem sou eu?”, o psicanalista Eduardo Leal Cunha, um baiano de 44 anos, que atualmente ensina no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe, mergulhou em um debate profundo: o uso da noção de identidade no mundo contemporâneo. Este é o tema de Indivíduo singular e plural – A identidade em questão (Editora 7 Letras), que ele lança depois de amanhã, às 17 horas, no Auditório da Faculdade de Comunicação da Ufba.

Fruto de sua tese de doutorado em saúde coletiva,na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (o mestrado em teoria psicanalítica na ele fez na Universidade Federal do Rio de janeiro), a publicação se concentra na amplitude da discussão. Em seu curso, revela a agilidade intelectual do autor para dar conta das articulações que ajudam a provocar o debate em suas dimensões subjetiva, individual e política (que passa pelas identidades étnicas e nacionais).

Nesta entrevista, Eduardo Cunha fala do processo contínuo de construção e desconstrução da identidade e analisa a origem da exclusão e do preconceito, que, segundo ele, “limitam as nossas possibilidades de experimentar o mundo“. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos e editor da Revista psicologia: ensino e formação, Eduardo havia frequentado o mercado editorial com O adultério em dez lições (Editora Planeta, 2004) e A psicologia entre indivíduo e sociedade (UFS, 2008), em co-autoria com Liliana da Escóssia.

Como se constrói a identidade?

Para começar, é preciso saber de qual identidade estamos falando, pois a ideia de identidade pode se referir a muitas coisas, da nossa própria identidade individual, referida a nosso nome e também a nosso corpo, como sendo aquilo que nos confere um caráter único frente a outras pessoas e também estável no tempo, aquele sentimento de que somos hoje a mesma pessoa que fomos ontem e seremos amanhã. Mas também pode se referir à nossa identidade nacional ou profissional. Posso ainda tomar a identidade como um sentimento ou signo de reconhecimento deque pertenço a determinado grupo e não a outro, baiano e não mineiro, por exemplo, ou amante de música erudita e não roqueiro. Em todos esses casos, o que há de comum é que a identidade é o que me permite descrever-me para mim mesmo e para o outro, fazer-me iguala uns e diferentes de outros. Ela também pode ser tomada, como propõe o sociólogo inglês Anthony Giddens, como uma narrativa, o enunciado responsável por garantir precisamente que sou único, íntegro, uno, e constante no tempo.

Então, é ao longo do tempo?

Sim, e está diretamente ligada a minha história pessoal, ao modo como interpreto e enuncio os acontecimentos que marcaram a minha vida.Deste modo, ela também precisa ser permanentemente reajustada, sobretudo a partir do modo como é percebida pelos outros, nas relações com as outras pessoas, que reconhecem – ou não – a minha identidade e a legitimam ou a negam. Nesse sentido, o sentimento de identidade se aproxima da confiança que posso ter no outro e em mim mesmo, no julgamento que faço a meu respeito e que o outro, a cada momento, confirma ou desmente.E a identidade dos grupos? Neste caso, talvez o mais importante é que tal processo de construção da identidade implica necessariamente excluir certas pessoas deste grupo, ou seja, afirmar que somos de algum modo radicalmente diferentes e, portanto,em certa medida, inconciliáveis. É por isso que o estrangeiro, aquele que não posso reconhecer como igual ou simplesmente aquele que não compreendo, muitas vezes surge como ameaça.Seu livro mostra a complexidade da exclusão.

Como nascem o preconceito e a intolerância?

Nascem das mais diversas formas e certamente eu não conseguiria aqui tratar com a necessária profundidade nem mesmo de uma pequena parcela dessas formas. Mas acho importante dizer que na maioria das vezes nós nem mesmo percebemos que estamos nos tornando intolerantes ou agimos guiados por preconceitos. Já seria muito bacana se nós apenas prestássemos atenção no que fazemos e dizemos, e pudéssemos perceber o quanto de preconceito e intolerância está presente nos nossos atos e no nosso discurso. Mesmo porque o outro, aquele que se sente atingido, normalmente nos sinaliza quando isso acontece.

Prestar atenção nas reações daqueles com quem convivemos é quase sempre a melhor maneira de nos conhecermos melhor. Precisamos ter cuidado quando usamos o preconceito e a intolerância para nos proteger, para nos sentirmos melhor com o que somos e assim nos livrar da necessidade de mudar.

O preconceito é inevitável?

Todos nós os temos, e não há como não tê-los, eles até nos são úteis de vez em quando. O que não podemos é nos orgulhar dos nossos preconceitos, acreditar que eles são inseparáveis de nós ou até mesmo que eles nos tornam melhores. Isso é uma grande bobagem: os nossos preconceitos nos tornam piores e, provavelmente, menos felizes do que poderíamos ser. Os preconceitos limitam as nossas possibilidades de experimentar o mundo e nos afastam das pessoas, das quais precisamos não apenas para sentir prazer, mas para viver e nos sentir humanos.

O senhor sugere a política da singularidade para nos ajudar a resolver as diferenças de uns com os outros. Como é isso?

Trata-se de imaginar formas de existência que abram mão do tipo de proteção que as identidades oferecem; que abram mão de manter o outro, o diferente, à distância, para que a proximidade com a diferença nos torne também, a cada dia, diferentes, capazes inclusive de nos movimentarmos com mais liberdade em um mundo que não para de mudar. Imaginar modos de ser nos quais a liberdade signifique não a liberdade de escolha, como numa loja de departamentos ou em um supermercado,mas a liberdade de deixar-se surpreender.Isso não resolveria os problemas, mas talvez nos permitisse, ao admitir a presença do diferente, ao conviver com ele, encontrar formas menos violentas, de resolver nossos problemas. Usar as diferenças para a construção de um mundo mais interessante, e não gastar todas as nossas energias para nos defendermos do diferente, para segregá-lo ou mesmo eliminá-lo. A ideia de singularidade vem do filósofo italiano Giorgio Agamben e o termo exato é “uma singularidade qualquer”, pois a identidade traz consigo, e esse é outro dos seus não-ditos, uma pretensão hierárquica, ou hierarquizante: não apenas ser diferente dos outros, mas ser melhor do que eles.

Defender a singularidade e a pluralidade é acreditar que um dia poderemos abrir mão das hierarquias, pelo menos das que se fixam e nos aprisionam, e sermos simplesmente diferentes, uns dos outros e até quem sabe de nós mesmos.

CADERNO2MAIS.ATARDE.COM.BR Leia outros trechos da entrevista com o psicanalista Eduardo Leal no blog do caderno 2 +

Por uma política da singularidade

LEANDRO COLLING

Professor adjunto do IHAC/Ufba

Quem sou eu? Mesmo sem perceber, somos incitados a responder, com cada vez mais frequência, essa pergunta. Partindo disso, o psicanalista Eduardo Leal Cunha inicia o livro da sua tese de doutorado, Indivíduo singular plural – A identidade em questão, sob a orientação de Joel Birman, que assina a orelha da obra.Leal faz uma rigorosa leitura e análise da obra do sociólogo Anthony Giddens. Depois, passa a dissecar as lacunas e influências teóricas do pensamento de Giddens e, aos poucos, aciona uma série de outros autores, alguns bem conhecidos do público, como Freud, Bauman, Foucault, Barthes e Marcuse, outros nem tão presentes em nossas bibliotecas, como Giorgio Agamben, Judith Butler, Theodor Reik, para citar alguns.

Didático - Essa lista de autores pode espantar alguns leitores. Livros ditos “acadêmicos” são considerados chatos por muitas pessoas. E alguns deles são mesmo, inclusive porque são mal escritos. Muitos autores são pernósticos e presumem que o leitor já tenha lido a obra dos citados. Esse, definitivamente, não é o caso do livro de Leal.

No entanto, não espere um panorama raso das obras com as quais ele dialoga. Leal consegue como poucos no Brasil, a exemplo do seu orientador, escrever de forma didática, clara e atraente tanto para iniciados quanto para iniciantes, desde que eles efetivamente estejam interessados nas temáticas em questão.

Mas o que defende Leal? De modo sucinto: Leal critica a tese de Giddens, para quem o homem contemporâneo, ao sofrer os impactos da modernidade tardia, produz uma narrativa do eu coerente e consciente, com vistas a garantir a adequação desse eu frente à realidade.

Leal aciona os autores para dizer que essa narrativa do eu coerente não é possível e talvez nem seja a melhor alternativa para o sujeito. Depois de Freud, que apresenta também com rigor, essa narrativa só seria possível através da exclusão e do recalque das fantasias inconscientes.

Gêneros - Leal usa Butler, apenas para citar mais um exemplo do seu estudo, para dizer que essa narrativa, em especial nas questões de gênero, só poderia ser realizada através dos gêneros que a sociedade já considera como aceitos, “naturais”, saudáveis, ou seja, aqueles que são inteligíveis.

E o que Leal propõe? O psicanalista não foge da questão. E aqui talvez resida uma de suas mais significativas colaborações para as reflexões sobre as políticas identitárias, na Bahia já bem conhecidas através dos movimentos negro, feminista e gay. Leal aponta a contingência dessas políticas que apostam em categorias fixas, em representações identitárias dominantes.

Mostra exatamente como essas políticas geram também exclusões e novas formas de racismo, misoginia e homofobia.

Sem heróis - Leal, bebendo nas reflexões de Foucault, combinadas com Agamben e outros, propõe uma política da singularidade, na qual o desejo, a liberdade, a hospitalidade sejam governados por Eros, como um ato amoroso.

Essa política, diz , ocorre “nos pequenos atos, pequenos enfrentamentos, pequenas vitórias ou derrotas (...) fora do grande cenário, à margem (...) sem heróis. Política sem a arrogância dos discursos vitoriosos que podemos chamar de ideologia”.

terça-feira, 3 de novembro de 2009