quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Eis a entrevista

“Fui ao banheiro da UFBA e vi a suástica na parede’

Pingue-pongue / Paul Gilroy

Leandro Colling

Correio da Bahia, 08/08/2000, caderno Folha da Bahia.

Professor de Sociologia e Estudos Afro-americanos da Yale University (Estados Unidos), Paul Gilroy, 44 anos, esteve em Salvador, no final do mês passado, participando do VII Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic). Além de palestrar, ele também lançou aqui o seu mais novo livro Against race (416 páginas, U$29,95). Gilroy ficou conhecido internacionalmente com o livro The black atlantic (280 páginas, U$14,95). Ambos foram editados pela Harvard University Press e podem ser adquiridos pelo site www.hup.harvard.edu.

Nesta entrevista, traduzida pela professora Liv Sovik, ele retoma algumas das suas preocupações como a presença do fascismo na sociedade contemporânea, a redução dos negros a meros símbolos, a validade da crítica ao pensamento de Gilberto Freyre.

Folha - Gostaria de começar repetindo uma pergunta que a professora Luiza Bairros, ligada ao movimento negro da Bahia, fez após a sua palestra no Congresso da Abralic. O senhor sugeriu uma mudança de ênfase no conceito de diáspora, não apenas relacionando-o com a idéia de movimentação de pessoas. Qual é a aplicabilidade do conceito para os movimentos negros do Brasil?

Gilroy - O conceito de diáspora tem maior utilidade quando é mais ligado à história da violência e terror. A visão mais escolástica o vê como sinônimo de viagens e produz uma inocência que, para mim, é profundamente preocupante. É muito fácil somatizar o deslocamento se você está numa situação confortável. Na intervenção que ela fez, enfatizou a elasticidade do conceito. Eu acho que a elasticidade é um dos motivos pelos quais vale a pena brigar por esse conceito. O que me interessa é a forma em que resistem as inclinações disciplinares e autoritárias dos que querem construir a nação. Mesmo quando eles têm boas intenções, acabam envolvidos em outras dinâmicas. No momento em que o nacionalismo insurgente se torna um nacionalismo governamental, está aí um umbral que precisamos olhar com cuidado. Porque o nacionalismo, em todas as suas formas, é um conjunto de patologias.

F - Na palestra, o senhor falou que essa mudança de ênfase do conceito de diáspora pode interromper a lógica daquele que tem o poder de determinar a identidade cultural. Como isso pode ocorrer?

PG - Existem diversas camadas nesse processo. A primeira é a circulação das pessoas, em geral relutantemente. É uma viagem forçada e por obrigação. Em segundo lugar, está a circulação de culturas materiais. Os objetos, à medida que circulam, podem transcender o seu estatuto de simples ou meras mercadorias. Em terceiro lugar, temos a circulação de idéias e mentalidades, a sensibilidade com relação ao mundo natural, externo e interno. Todas essas camadas contribuem com esse processo. E, depois, entram os processos tecnológicos, os complexos tecno-culturais promovendo diferentes padrões ou modelos de solidariedade. O meio acadêmico se identifica muito melhor com o movimento de culturas textuais do que com outros complexos tecnológicos e as formas em que a vida das pessoas pode se conectar.

F - Ao falar da terceira camada desse processo, lembro do seu novo livro, Against race, onde o senhor defende que a mídia reduz as pessoas negras a meros símbolos. O senhor poderia desenvolver esta afirmação? Em que segmento da mídia, o senhor vê isso com mais ênfase?

PG - Quando eu escrevi esse livro, estava pensando na revolução fascista política dos anos 30. Eu vejo esse momento como uma inovação primária política. Uma das formas em que isso se registra é na discussão, já antiga, chamada de estetização da polícia. Eu queria desenvolver essa discussão tomando outro rumo. Não como a política é fruto do ser espectador e da diversão em massa, mas rumo à presença dos significantes icônicos. Os símbolos destilados que são parecidos com esses planetas pesados que nós conhecemos, onde a matéria é tão densa que uma colherinha de chá já fura a terra. O surgimento destes significantes icônicos está ligado com a proibição da fala que os regimes autoritários e totalitários exigem.

F - O senhor poderia dar um exemplo?

PG - O símbolo da Nike vira um choque posterior ao da suástica. Esse aspecto de associação se dá através das rotinas da cultura da empresa. Me interessei em saber o que acontece com o corpo do negro nessas circunstâncias. Para tomar um exemplo óbvio, que não é o de Pelé, cito a figura de Michel Jordan. Eu sei que há algumas resistências a essas questões aqui, mas eu sei que ainda estão presentes. Se você compra a roupa com a grife dele, a logomarca é uma imagem dele pulando no ar com uma bola na mão. Isso torna-se um ícone em si mesmo. Eu queria entender como essa mentalidade empresarial tratou desta política identitária. A necessidade de saber e ter certeza de quem se é em circunstâncias que produzem uma ansiedade em torno de quem se é. Isso foi colonizado por interesses empresariais.

F - Então, o negro se transformou apenas num símbolo de vitalidade e isso também tem importância, mas não uma importância substancial?

PG - Na história do pensamento da raça, que divide claramente os atributos do corpo com os atributos da mente, aos negros foram delegados os atributos do corpo há muito tempo. Mas o diferente é que neste momento pós-moderno, a atividade corporal adquiriu um novo prestígio que atravessa culturas. Eu já observei da janela do quarto do hotel (ele estava hospedado na orla da Barra), os cidadãos privilegiados que estão fazendo exercícios na academia ali em frente. Esta é a cena primal do pós-moderno. É diferente, me parece, do praticar capoeira na praia.

F - No seu novo livro, o senhor também fala que o poder de sedução do fascismo não morreu com o fim dos fornos na Alemanha. Onde o senhor identifica o fascismo com mais força?

PG - Quando eu fui ao banheiro na universidade (UFBA), vi uma suástica na parede. Eu sei que vocês têm aqui um movimento neonazista pequeno. Quando perguntei a respeito, alguém me falou que queriam deportar os judeus, homossexuais e outras pessoas do Nordeste. Me pareceu que não iria sobrar mais ninguém. Eu não estou tão preocupado com as pessoas que colocam um crachá com a sua filiação ao fascismo dos anos 30, ou anunciando isso com uma linguagem política. Estou interessado nas pessoas que repetem os hábitos, os gestos, a solidariedade e as hierarquias como a pureza daquela política, sem dizer que são membros daquele grupo. Mesmo as pessoas que foram oprimidas podem ser vulneráveis a essa sedução. Essa é uma mímese muito perigosa deste poder. Podemos ser vítimas de manhã e, à tarde, podemos ser quem realmente aplica este mesmo terror. Isto tem a ver com o meu argumento em torno da falta ética em torno do nosso anti-racismo. A história do sofrimento não pertence apenas às vítimas e seus dependentes, mas tem um significado maior. Se as pessoas avançam em boa fé, podem ousar lançar mão disso e serão julgadas a partir daí, a partir do que fazem com a sua história.

F - Na palestra e também no novo livro, o senhor disse defender a aceleração da morte da raça. Como essa proposta repercute entre os próprios negros, depois de todo um movimento que tenta a afirmação da raça?

PG - Não me interessa tanto a morte da raça quanto a morte do racismo. Isso é o mais importante. Eu acho que podemos trabalhar melhor contra o racismo quando nós não antagonizamos a diferença racial. Existe um argumento histórico também. Depois da revolução da biotecnologia, e o surgimento do que na palestra eu chamei de biocolonialismo, temos um patrimônio em nossas assinaturas do nosso DNA. Não acho que a definição de raça do Século XVIII vai sobreviver a este encontro. Não implica que a ciência vai desmontar o racismo para nós, mas nos lembra que o discurso racial muda com o tempo e que, com a biotecnologia e o biocolonialismo, ele está passando por uma grande mudança. É possível que as aspirações eugênicas que acompanharam este movimento nostálgico vão nos dar saudades da época da raça.

F - Ainda é importante fazer a crítica a Gilberto Freyre sobre a miscigenação e responsabilizar ele pela criação do mito da democracia racial no Brasil?

PG - Como forasteiro, eu observo que este mito permite que a burguesia não se sinta nada pressionada sobre o racismo que existe no Brasil. Até que este recurso não exista mais, esta crítica terá que ser feita. Mas é uma crítica que não deve ser descartada inteiramente porque é o nosso alerta de padrões ou modelos de interdependência que ainda são muito importantes. A negrofobia e a negrofilia podem co-existir.

F - É a primeira vez que o senhor vem ao Brasil? Quais as suas impressões sobre Salvador?

PG - Sim, é a primeira vez. Há muito tempo que eu queria vir, mas seria errado vir sem ter um ponto de diálogo. Eu queria ouvir o que as pessoas estão dizendo. As impressões são um pouco misturadas, mas chamou a atenção a ambivalência de um Pelourinho disneyficado. Na palestra, eu quis dizer que o Pelourinho não era um lugar de memória da maneira que eu esperava. É estranho quando você vê o material turístico que nós recebemos aqui, como visitantes privilegiados, e a palavra escravidão nunca ser mencionada. Nós somos informados que a indústria açucareira teve um grande boom no Século XVIII. Me parece que a incapacidade de falar a palavra escravidão não é um bom sintoma.

Um comentário:

Dani Hristov disse...

Me surpreendi com esse lance das suásticas desenhadas pela cidade não serem de fato tão recente assim como eu estava pensando.
Ouvi alguns comentários que atualmente elas estariam ligadas a uma movimento de classe... Será esta apenas uma ingênua leitura?
Eu não acredito que o corpo um dia possa suplantar o cérebro como sugere parte da entrevista. A cabeça no discurso de muitos ainda nem faz parte do corpo, a humanidade ainda olha para o corpo como um espaço estético, e não como um todo capaz de absorver conhecimentos.

Dani Hristov