sábado, 28 de novembro de 2009

Na FSP de hoje

ANTONIO CICERO

Sobre a lei contra a homofobia

A aprovação dela representará um passo para tornar o Brasil um país mais civilizado

ENCONTRA-SE em tramitação no Senado Federal o projeto de lei (PLC 122/ 2006) que pune a discriminação baseada na orientação sexual ou na identidade de gênero do cidadão. A aprovação dessa lei representará sem dúvida um passo para tornar o Brasil um país mais civilizado.

Por que digo "civilizado"? Porque civilizado é quem se opõe à barbárie e a deixa para trás. Ora, o bárbaro é aquele que, guiando-se por preconceitos jamais questionados, não tolera, no universo das possibilidades vitais dele mesmo e dos demais membros da sua comunidade - ou até da humanidade - qualquer comportamento alternativo: aquele que busca impor, a ferro e fogo, a sua maneira de ser a todos os demais, tentando escravizar ou eliminar aqueles que não se conformem.

Em oposição a isso, civilizado é quem é capaz de fazer uso da razão para criticar todos os preconceitos, inclusive aqueles em que foi criado. No fundo, a civilização é o ceticismo metódico. O civilizado sabe que é por acaso -porque por acaso nasceu neste e não naquele país, nesta e não naquela classe social, nesta e não naquela família- que cada qual tem os hábitos, os valores, as crenças, os preconceitos que tem; sabe, portanto, que nenhum conjunto de preconceitos é, por direito, superior a nenhum outro. Sabendo disso, o civilizado sabe também que o único motivo que pode racionalmente ser invocado para negar a alguém o direito a se comportar de determinada maneira é que tal comportamento feriria os iguais direitos de outras pessoas.

Pois bem, o fato de que uma pessoa manifeste determinada orientação sexual não impede que outras pessoas manifestem outras orientações sexuais ou que exerçam qualquer outro direito legítimo. Consequentemente, trata-se de um direito inquestionável. Ora, a lei em questão tem o sentido de garantir a cada qual o exercício pleno desse direito. Ela visa garantir que a orientação sexual ou a identidade de gênero de uma pessoa não a sujeite -como tão frequentemente ocorre hoje- a sofrer discriminação, agressão verbal, violência física ou mesmo assassinato, enquanto seus agressores gozem de impunidade. Nisso reside seu sentido civilizatório.É claro que a barbárie, na forma, por exemplo, do fanatismo de zelotes ou fundamentalistas religiosos, não deixa de apelar a todo tipo de sofisma para tentar desclassificar esse projeto de lei.

Semelhante sofisma é, por exemplo, a tese de que o sexo não reprodutivo contraria uma pretensa lei natural. Já falei sobre tal "lei" noutro artigo, mas não posso deixar de me repetir neste ponto. É um erro confundir as leis da natureza, que são descritivas, isto é, dizem o que realmente acontece, com as leis humanas, que são prescritivas, isto é, dizem o que deve (ou não deve) ser feito. A lei da gravidade, por exemplo, não diz que todos os corpos que têm massa devem se atrair de determinado modo e sim que se atraem desse modo. Se for descoberto que determinados corpos têm massa e, no entanto, não se atraem do modo previsto, não serão esses corpos que estarão errados, mas a lei da gravidade. Assim também, se uma "lei natural" diz que os indivíduos do mesmo sexo não sentem atração erótica uns pelos outros, basta abrir os olhos para ver que essa "lei" está errada, ou melhor, não é lei, não existe.

De todo modo, tanto a física contemporânea quanto a lei da evolução das espécies já mostraram que a natureza está em constante mutação. O ser humano mesmo talvez seja a mais radical dessas mutações, de modo que não apenas a espécie humana mas cada indivíduo humano é quase infinitamente capaz de mudar a si próprio, capaz de experimentar o que nunca antes se experimentou, capaz de criar o que nunca antes existiu. Substituindo o instinto pela experimentação, o ser humano já há muito foi capaz de separar radicalmente sexo de reprodução. Diante de tudo isso, a invocação de uma "lei natural" para tentar tolher o seu comportamento é simplesmente ridícula.

Finalmente, é falso que a lei em questão restringiria a liberdade de expressão simplesmente porque proibiria praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito contra orientação sexual ou identidade de gênero. Afinal, a lei 7.716 (Lei Caó) já faz exatamente isso em relação a raça, cor, etnia, religião e procedência nacional e não é considerada prejudicial à liberdade de expressão.Esperemos que o Senado Federal, rejeitando o fanatismo e a barbárie, escolha para o Brasil o caminho da razão e da civilização.

a.cicero@uol.com.br

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Mouffe

Feminismo e filosofia política em Chantal Mouffe

*Josadac Bezerra dos Santos

Em “O Regresso do Político”, coletânea de ensaios da própria autora, o feminismo enquanto corrente teórica no pensamento da filósofa Chantal Mouffe (1996), aparece associado a uma corrente do pensamento político. Mouffe faz uma distinção entre o que ela chama de “a política” e “o político”. Na primeira expressão a referência é ao mundo da política entendido como a organização institucional do Estado e das instituições representativas tais como partidos políticos, sindicatos, igrejas, associações de classe, entre outras. Na segunda, a referência é a uma compreensão teórica segundo a qual a sociedade estaria pulverizada por uma diversidade de situações de conflito e de relações de opressão, onde se evidencia a luta pela igualdade e/ou liberdade em determinados pontos do social, numa clara indicação de que o projeto político moderno elaborado pelo liberalismo falha no propósito de estender, a todos e a todas, tais benefícios.

A contribuição específica de Mouffe vem do que ela entende por “democracia radical”, e de suas reflexões sobre a relação amigo/inimigo em política. A autora parte da noção de C. Schmitt para quem o fundamento do conflito político se encontra na existência de um elemento de hostilidade entre os seres humanos, evidenciado em nossas sociedades modernas pela manifestação de uma diversidade de relações sociais as mais diferentes, onde tais conflitos acabam aparecendo. Ora, ao reconhecer a natureza necessariamente diversificada das relações sociais, e nelas as condições de possibilidade do surgimento de conflitos em determinados lugares do social, Mouffe estabelece as bases para a defesa de sua teoria política que, ao contrário da perspectiva liberal, sustenta a importância do dissenso numa sociedade democrática. A este reconhecimento Mouffe chamou de “pluralismo agonístico”. A natureza radical da democracia estaria, portanto, na inerradicabilidade do antagonismo (MOUFFE, 2003).

Em relação ao conceito de identidade, pelo menos três características precisam estar claras: a primeira é o caráter relacional inerente às identidades. Toda identidade constrói-se na relação com o outro. No conflito político, o “eu” só existe como diferença do “outro”. O “eu” (particularismo), tende a associar-se a outros, construindo-se assim um “nós”, que por sua vez tende a se opor a um “outro” que se articula a outras particularidades, formando um “eles”. É neste momento que “o político” aparece ontologicamente no processo social (LACLAU, 2006).
A segunda característica da concepção de identidade em Laclau e Mouffe é o antiessencialismo. Este é a negação da existência de um fundamento único, de caráter universal e de natureza permanente. E a terceira seria o descentramento do sujeito, como explicitado Stuart Hall (2004), em virtude do reconhecimento de que também não é possível falar-se em um sujeito universal completamente transparente, o que por sua vez implica em admitir-se a existência de posições de sujeito (LACLAU, 2006). Isto significa que agentes sociais são portadores de diferentes posições de sujeito em situações diferentes na sociedade, o que acaba não permitindo que qualquer dessas posições torne-se completamente fixa, a não ser temporariamente e de forma precária.

Assim, para Mouffe não é possível falar-se da categoria “mulher” nem enquanto sujeito universal, nem enquanto uma identidade essencial do feminismo. Aliás, essa rejeição radical a qualquer essencialismo tem sido um dos marcos mais relevantes do seu pensamento em relação às outras concepções teóricas feministas, uma vez que a sua principal crítica às demais correntes consiste em afirmar que às diversas teorias feministas preservam algum tipo de essencialismo. Mais do que isso, um essencialismo pré-existente aos conflitos inerentes à própria construção das identidades, o que na sua visão impossibilita a resolução do problema fundamental apontado pelo movimento feminista: a desigualdade entre os sexos e a situação de opressão em que em muitas situações se encontram as mulheres.

A solução apontada por Mouffe passa, então, pelo que ela entende ser o caminho possível para um feminismo conseqüente politicamente: o reconhecimento de que a luta das mulheres se assemelha a outras lutas de outros movimentos que buscam pelo mesmo valor político em muitas situações conjunturais concomitantes, sempre de caráter contingente e precário; e que só através de uma prática política articulatória entre uma variedade de movimentos que estejam lutando por algum significado particular de liberdade e/ou igualdade, é que se torna possível falar-se de um movimento feminista.

Breves considerações práticas

Um exemplo do que estamos afirmando, pode ser percebido na leitura do “Manifesto sobre a Campanha da Fraternidade 2008 - Considerações de Católicas sobre a Defesa da Vida”, recentemente divulgado pelas Católicas pelo Direito de Decidir, uma ong feminista formada por teólogas e sociólogas católicas que defende a legalização do aborto a partir da condição de mulheres católicas. No referido manifesto há alusões explícitas à eutanásia, um tema pouquíssimo debatido no país, mas, incorporado ao discurso das Católicas pelo Direito de Decidir porque embora tenha particularidades que o diferenciam em muito do discurso sobre a defesa do aborto, o discurso sobre a defesa eutanásia tem um elemento que o remete ao discurso pela defesa do aborto: o direito de decidir.

O apoio das Católicas pelo Direito de Decidir à luta dos homossexuais, por exemplo, é também uma demonstração concreta desta prática articulatória. As Católicas pelo Direito de Decidir são presença certa nas paradas pela diversidade sexual que ocorre periodicamente na cidade de São Paulo. Mas uma vez, pode-se perceber que a particularidade do movimento GLBTT não impede que tal movimento receba o apoio político das Católicas pelo Direito de Decidir, uma vez que todos esses discursos defendem politicamente o direito de decidir. Às mulheres o direito de decidir sobre seus corpos e sobre a sua capacidade reprodutiva; aos que sofrem e perderam qualquer sentido de dignidade da vida, o direito de decidir sobre o fim de suas funções biológicas vitais e, aos homossexuais e outros grupos alternativos no campo da sexualidade, o direito de decidir sobre suas sexualidades, e assim por diante.

Para que se reconheça a situação de conflito e, consequentemente o dissenso inerente às democracias modernas, é preciso lembrar que existe na sociedade brasileira, hoje, uma prática política articulatória que reúne alguns discursos particulares que se unem em favor de um outro significante: o direito à vida em oposição ao direito de decidir. O discurso oficial da Igreja Católica pelo direito à vida encontra receptividade dentro da esfera religiosa, tanto em igrejas protestantes históricas quanto no espiritismo; e fora da esfera religiosa entre homens de mentalidade machista, grupos políticos conservadores, e discursos jurídicos fundamentados nas fontes tradicionais do direito, seja no que se refere ao aborto, à eutanásia ou na questão da diversidade sexual, sempre na defesa da negação da autonomia desses sujeitos que assumem posições opostas à visão hegemônica na nossa sociedade.

Conclusão

Concluí-se, pois, que para Mouffe o feminismo só se constitui em um movimento político conseqüente fazendo parte de uma ação articulatória mais ampla que, associado a uma cadeia de equivalências formada por outros movimentos cujo discurso aponte para situações de opressão, lute por liberdade e/ou igualdade na busca pela democracia em lugares pontuais do social, onde estes valores políticos não estejam total ou parcialmente presentes.

Pelo menos em grande parte, excluí-se também a possibilidade de que Chantal Mouffe apresente uma teoria social exclusivamente feminista, como o fazem outras autoras, uma vez que suas concepções sobre a revolução do nosso tempo, implicam em que se terá necessariamente de construir um projeto político mais amplo em torno de muitas situações pontuais do social, associadas a outras muitas situações particulares, na construção de uma hegemonia, que inverta a situação encontrada.

*É doutor em Sociologia e professor de Ciência Política do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe - UFS. josadac@oi.com.br

retirado de http://www.fatimacleide.com.br/?p=2257

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A Tarde de hoje

O jornal A Tarde desta segunda-feira, dia 9 de novembro, destacou o lançamento do livro do professor Eduardo Leal Cunha, que ocorre na próxima quarta, dia 11, às 17h, no auditório da Facom/UFBA. Além de uma entrevista, o jornal publicou uma resenha do livro, escrita pelo professor Leandro Colling, do IHAC (leia textos abaixo).

O lançamento é promovido pelo Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade, pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciências professor Milton Santos (IHAC), pela Faculdade de Comunicação e pelo Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT). O evento foi aprovado como atividade de extensão do IHAC e, por isso, serão emitidos certificados aos inscritos. As inscrições poderão ser realizadas na hora.

No lançamento do livro, o psicanalista e professor da Universidade Federal de Sergipe, Eduardo Leal Cunha, fará a conferência Identidade, ética e subjetivação no mundo contemporâneo, seguida de coquetel.

Leia a entrevista e resenha publicados no jornal A Tarde de hoje:

NÃO PODEMOS NOS ORGULHAR DOS NOSSOS PRECONCEITOS

Eduardo Leal Cunha

CÁSSIA CANDRA

Partindo de um aparentemente despretensioso “quem sou eu?”, o psicanalista Eduardo Leal Cunha, um baiano de 44 anos, que atualmente ensina no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe, mergulhou em um debate profundo: o uso da noção de identidade no mundo contemporâneo. Este é o tema de Indivíduo singular e plural – A identidade em questão (Editora 7 Letras), que ele lança depois de amanhã, às 17 horas, no Auditório da Faculdade de Comunicação da Ufba.

Fruto de sua tese de doutorado em saúde coletiva,na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (o mestrado em teoria psicanalítica na ele fez na Universidade Federal do Rio de janeiro), a publicação se concentra na amplitude da discussão. Em seu curso, revela a agilidade intelectual do autor para dar conta das articulações que ajudam a provocar o debate em suas dimensões subjetiva, individual e política (que passa pelas identidades étnicas e nacionais).

Nesta entrevista, Eduardo Cunha fala do processo contínuo de construção e desconstrução da identidade e analisa a origem da exclusão e do preconceito, que, segundo ele, “limitam as nossas possibilidades de experimentar o mundo“. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos e editor da Revista psicologia: ensino e formação, Eduardo havia frequentado o mercado editorial com O adultério em dez lições (Editora Planeta, 2004) e A psicologia entre indivíduo e sociedade (UFS, 2008), em co-autoria com Liliana da Escóssia.

Como se constrói a identidade?

Para começar, é preciso saber de qual identidade estamos falando, pois a ideia de identidade pode se referir a muitas coisas, da nossa própria identidade individual, referida a nosso nome e também a nosso corpo, como sendo aquilo que nos confere um caráter único frente a outras pessoas e também estável no tempo, aquele sentimento de que somos hoje a mesma pessoa que fomos ontem e seremos amanhã. Mas também pode se referir à nossa identidade nacional ou profissional. Posso ainda tomar a identidade como um sentimento ou signo de reconhecimento deque pertenço a determinado grupo e não a outro, baiano e não mineiro, por exemplo, ou amante de música erudita e não roqueiro. Em todos esses casos, o que há de comum é que a identidade é o que me permite descrever-me para mim mesmo e para o outro, fazer-me iguala uns e diferentes de outros. Ela também pode ser tomada, como propõe o sociólogo inglês Anthony Giddens, como uma narrativa, o enunciado responsável por garantir precisamente que sou único, íntegro, uno, e constante no tempo.

Então, é ao longo do tempo?

Sim, e está diretamente ligada a minha história pessoal, ao modo como interpreto e enuncio os acontecimentos que marcaram a minha vida.Deste modo, ela também precisa ser permanentemente reajustada, sobretudo a partir do modo como é percebida pelos outros, nas relações com as outras pessoas, que reconhecem – ou não – a minha identidade e a legitimam ou a negam. Nesse sentido, o sentimento de identidade se aproxima da confiança que posso ter no outro e em mim mesmo, no julgamento que faço a meu respeito e que o outro, a cada momento, confirma ou desmente.E a identidade dos grupos? Neste caso, talvez o mais importante é que tal processo de construção da identidade implica necessariamente excluir certas pessoas deste grupo, ou seja, afirmar que somos de algum modo radicalmente diferentes e, portanto,em certa medida, inconciliáveis. É por isso que o estrangeiro, aquele que não posso reconhecer como igual ou simplesmente aquele que não compreendo, muitas vezes surge como ameaça.Seu livro mostra a complexidade da exclusão.

Como nascem o preconceito e a intolerância?

Nascem das mais diversas formas e certamente eu não conseguiria aqui tratar com a necessária profundidade nem mesmo de uma pequena parcela dessas formas. Mas acho importante dizer que na maioria das vezes nós nem mesmo percebemos que estamos nos tornando intolerantes ou agimos guiados por preconceitos. Já seria muito bacana se nós apenas prestássemos atenção no que fazemos e dizemos, e pudéssemos perceber o quanto de preconceito e intolerância está presente nos nossos atos e no nosso discurso. Mesmo porque o outro, aquele que se sente atingido, normalmente nos sinaliza quando isso acontece.

Prestar atenção nas reações daqueles com quem convivemos é quase sempre a melhor maneira de nos conhecermos melhor. Precisamos ter cuidado quando usamos o preconceito e a intolerância para nos proteger, para nos sentirmos melhor com o que somos e assim nos livrar da necessidade de mudar.

O preconceito é inevitável?

Todos nós os temos, e não há como não tê-los, eles até nos são úteis de vez em quando. O que não podemos é nos orgulhar dos nossos preconceitos, acreditar que eles são inseparáveis de nós ou até mesmo que eles nos tornam melhores. Isso é uma grande bobagem: os nossos preconceitos nos tornam piores e, provavelmente, menos felizes do que poderíamos ser. Os preconceitos limitam as nossas possibilidades de experimentar o mundo e nos afastam das pessoas, das quais precisamos não apenas para sentir prazer, mas para viver e nos sentir humanos.

O senhor sugere a política da singularidade para nos ajudar a resolver as diferenças de uns com os outros. Como é isso?

Trata-se de imaginar formas de existência que abram mão do tipo de proteção que as identidades oferecem; que abram mão de manter o outro, o diferente, à distância, para que a proximidade com a diferença nos torne também, a cada dia, diferentes, capazes inclusive de nos movimentarmos com mais liberdade em um mundo que não para de mudar. Imaginar modos de ser nos quais a liberdade signifique não a liberdade de escolha, como numa loja de departamentos ou em um supermercado,mas a liberdade de deixar-se surpreender.Isso não resolveria os problemas, mas talvez nos permitisse, ao admitir a presença do diferente, ao conviver com ele, encontrar formas menos violentas, de resolver nossos problemas. Usar as diferenças para a construção de um mundo mais interessante, e não gastar todas as nossas energias para nos defendermos do diferente, para segregá-lo ou mesmo eliminá-lo. A ideia de singularidade vem do filósofo italiano Giorgio Agamben e o termo exato é “uma singularidade qualquer”, pois a identidade traz consigo, e esse é outro dos seus não-ditos, uma pretensão hierárquica, ou hierarquizante: não apenas ser diferente dos outros, mas ser melhor do que eles.

Defender a singularidade e a pluralidade é acreditar que um dia poderemos abrir mão das hierarquias, pelo menos das que se fixam e nos aprisionam, e sermos simplesmente diferentes, uns dos outros e até quem sabe de nós mesmos.

CADERNO2MAIS.ATARDE.COM.BR Leia outros trechos da entrevista com o psicanalista Eduardo Leal no blog do caderno 2 +

Por uma política da singularidade

LEANDRO COLLING

Professor adjunto do IHAC/Ufba

Quem sou eu? Mesmo sem perceber, somos incitados a responder, com cada vez mais frequência, essa pergunta. Partindo disso, o psicanalista Eduardo Leal Cunha inicia o livro da sua tese de doutorado, Indivíduo singular plural – A identidade em questão, sob a orientação de Joel Birman, que assina a orelha da obra.Leal faz uma rigorosa leitura e análise da obra do sociólogo Anthony Giddens. Depois, passa a dissecar as lacunas e influências teóricas do pensamento de Giddens e, aos poucos, aciona uma série de outros autores, alguns bem conhecidos do público, como Freud, Bauman, Foucault, Barthes e Marcuse, outros nem tão presentes em nossas bibliotecas, como Giorgio Agamben, Judith Butler, Theodor Reik, para citar alguns.

Didático - Essa lista de autores pode espantar alguns leitores. Livros ditos “acadêmicos” são considerados chatos por muitas pessoas. E alguns deles são mesmo, inclusive porque são mal escritos. Muitos autores são pernósticos e presumem que o leitor já tenha lido a obra dos citados. Esse, definitivamente, não é o caso do livro de Leal.

No entanto, não espere um panorama raso das obras com as quais ele dialoga. Leal consegue como poucos no Brasil, a exemplo do seu orientador, escrever de forma didática, clara e atraente tanto para iniciados quanto para iniciantes, desde que eles efetivamente estejam interessados nas temáticas em questão.

Mas o que defende Leal? De modo sucinto: Leal critica a tese de Giddens, para quem o homem contemporâneo, ao sofrer os impactos da modernidade tardia, produz uma narrativa do eu coerente e consciente, com vistas a garantir a adequação desse eu frente à realidade.

Leal aciona os autores para dizer que essa narrativa do eu coerente não é possível e talvez nem seja a melhor alternativa para o sujeito. Depois de Freud, que apresenta também com rigor, essa narrativa só seria possível através da exclusão e do recalque das fantasias inconscientes.

Gêneros - Leal usa Butler, apenas para citar mais um exemplo do seu estudo, para dizer que essa narrativa, em especial nas questões de gênero, só poderia ser realizada através dos gêneros que a sociedade já considera como aceitos, “naturais”, saudáveis, ou seja, aqueles que são inteligíveis.

E o que Leal propõe? O psicanalista não foge da questão. E aqui talvez resida uma de suas mais significativas colaborações para as reflexões sobre as políticas identitárias, na Bahia já bem conhecidas através dos movimentos negro, feminista e gay. Leal aponta a contingência dessas políticas que apostam em categorias fixas, em representações identitárias dominantes.

Mostra exatamente como essas políticas geram também exclusões e novas formas de racismo, misoginia e homofobia.

Sem heróis - Leal, bebendo nas reflexões de Foucault, combinadas com Agamben e outros, propõe uma política da singularidade, na qual o desejo, a liberdade, a hospitalidade sejam governados por Eros, como um ato amoroso.

Essa política, diz , ocorre “nos pequenos atos, pequenos enfrentamentos, pequenas vitórias ou derrotas (...) fora do grande cenário, à margem (...) sem heróis. Política sem a arrogância dos discursos vitoriosos que podemos chamar de ideologia”.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Próximo texto

Pessoas, conforme combinamos na última aula (dia 21), o texto que discutiremos no dia 28 de outubro pode ser acessado no http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982007000200002

Deixei uma cópia na nossa pasta na xerox.

Assim, não discutiremos o capítulo do livro do Eduardo Leal. Cfe. expliquei, o artigo é mais interessante para nossa discussão.

Um abraço, Leandro

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Convite e boa idéia

Fernanda mandou essa mensagem.

Amanhã (dia 14/10) terá mais uma Sessão Possíveis Sexualidades, evento paralelo do VI Festival Internacional de Cinema de Salvador. Pensei que após a aula poderíamos convidar a turma para assistir As filhas da Chiquita, às 20h30, no Cinema da UFBA.

Após a sessão, haverá a realização de uma mesa-redonda. Seria uma atividade extra-disciplina, posso tentar conseguir alguns convites. Tanto o filme como a mesa tem relação direta com a nossa disciplina.

AS FILHAS DA CHIQUITA
Direção: PriscillaPais / Ano de Produção: Brasil, 2006.Duração: 52 min.Sinopse: Há 28 anos, no segundo domingo de outubro, a bicentenária procissão do Círio de Nazaré – maior romaria católica do Brasil e uma das maiores do mundo – é obrigada a conviver com a Festa da Chiquita, o mais tradicional encontro gay da Amazônia.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Raças e cotas

Contardo Calligaris

Psicanalista, doutor em psicologia clínica e ensaísta. Vive e clinica entre os EUA e São Paulo

Pertencemos a uma única espécie: a espécie humana. Quanto a isso, não há dúvida, visto que procriamos alegremente sem que as diferenças étnicas ou raciais atrapalhem o bom funcionamento sexual e reprodutivo.

Mas só 250 anos atrás, na América do Norte e na França, foi proclamado o princípio de que, por pertencermos à mesma espécie, temos todos os mesmos direitos, independentemente de etnia, cultura, religião, gênero, berço e cor (da pele, do cabelo ou dos olhos). Desde então, esse princípio vem se afirmando, aos trancos e, sobretudo, aos barrancos, por várias razões.

1) Há etnias e culturas que não topam aquela ideia proclamada 250 anos atrás.

2) Não conseguimos decidir se nossa igualdade de direito deve implicar ou não igualdade de fato. Depois de algumas tentativas desastradas, parece que concluímos que o importante é que todos tenhamos, ao menos, oportunidades parecidas no começo da vida.

Estamos longe disso.

3) Mesmo acreditando na unidade da espécie e na igualdade dos direitos, adoramos pertencer a uma turma e continuamos enxergando um mundo dividido em nações, etnias, raças, classes, torcidas etc.

Claro, prezamos nossa singularidade e, por isso, queremos ser contados um a um, como indivíduos, cada um diferente e único dentro da espécie comum.

Mas também gostamos de privilégios, e os privilégios são mais “agradáveis” quando são negados a um grupo de excluídos: sala VIP só tem “graça” se os outros esperam no saguão do aeroporto.

Em suma, no mínimo, a vontade de sermos singulares nos induz a criar grupos de discriminados, “diferentes” de nós.

4) As vítimas dessa discriminação, na hora de invocaro princípio da igualdade de todos para obterem os mesmos direitos dos demais, são obrigadas a se constituírem como grupo.

Sem isso, sua reivindicação não teria chance alguma: o protesto de um negro discriminado será sem efeito se não existir algum “movimento negro”.

Em tese, os grupos de vítimas da discriminação deveriam ser fundados em “identidades de defesa”, ou seja, identidades que surgem provisoriamente, de maneira reativa.

Por exemplo, “os negros” existem como grupo, aos olhos dos racistas, para serem discriminados; ora, a luta contra essa discriminação exige uma identidade positiva, de modo que os negros possam existir como grupo na hora de se opor à sua discriminação.

No caso, eles afirmarão e valorizarão uma improvável ascendência racial comum. Problema: ao defender-se, eles darão crédito à mesma diferença inventada pelos racistas a fim de discriminá-los.

O perigo é que essas identidades, adotadas para lutar contra a discriminação e permitir, enfim, uma sociedade de indivíduos iguais, acabem consolidando as próprias diferenças que se trata de abolir. Por exemplo, uma política de cotas reservadas a negros e pardos (na universidade, no emprego público e mesmo no setor privado) é uma maneira de se opor à discriminação, mas, para funcionar, ela exige que a gente acredite nas diferenças raciais e as estabeleça como parte da identidadedo cidadão que é exatamente a situação com a qual o racismo sonha desde sempre.

Esse argumento é crucial no livro de Demétrio Magnoli, \'Uma Gota de Sangue\' (ed. Contexto), que é, ao mesmo tempo, uma excelente história e apresentação do racismo no mundo moderno e uma crítica das políticas de cotas, por elas necessariamente confirmarem a existência de diferenças raciais que não têm realidade biológica e cujo fundamento histórico é o próprio racismo. Isso, logo no Brasil, onde a mistura das cores deixaria esperar um enterro mais rápido da categoria de raça.

Compartilho com Magnoli o sonho de uma sociedade em que a cor da pele seja indiferente. Mas minha avaliação das políticas de cotas é “matizada”.

Quando cheguei nos EUA, em 94, eu pensava como Magnoli, ou seja, previa que o sistema de cotas, instituído para “compensar” os efeitos da discriminação, dividiria o País, levando-o de volta para o século 19.

Não foi o que aconteceu. Aos poucos, a presença de cidadãos de todas as cores na maioria das corporações (da polícia urbana ao corpo docente das universidades) se transformou num duplo valor compartilhado por todos ou quase: um valor estético (a diversidade é bonita) e um valor produtivo (a diversidade é funcional).

Até que um dia pareceu lógico, num país cujo Sul inteiro foi racista e segregado, que um negro pudesse ser presidente.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Avelar e Risério

O livro do ano

Trata-se, na humilde opinião deste blog, do livro mais importante publicado no Brasil em 2007. A utopia brasileira e os movimentos negros, de Antonio Risério, já nasceu clássico. Racismo, cotas raciais, mestiçagem: nada disso já pode ser discutido seriamente sem referência a este livro corajoso e debochado, anti-acadêmico mas erudito, politicamente incorreto mas incendiário. Risério é uma voz quase que solitária no debate sobre estes temas. Conhecedor profundo das culturas negromestiças brasileiras – autor, afinal de contas, de Carnaval Ijexá e Oriki Orixá -- Risério vem alertando: é um suicídio jogar fora o bebê da mestiçagem junto com a água suja do combate ao racismo. Importar as lentes bicolores americanas é importar o que os Estados Unidos têm de pior.

É difícil resumir a tese de um livro tão rico (há até um capítulo sobre o futebol), mas aí vai minha melhor tentativa: a importação do paradigma racial dicotômico americano, obra do academicismo bem-pensante e dos movimentos “neonegros” (o termo é de Risério), choca-se com a realidade multicromática do país. Tenta encaixá-la numa camisa-de-força binária. Confunde a mestiçagem – maravilha e legado do Brasil ao mundo – com o escamoteamento do racismo, como se celebrar a mistura significasse esquecer que ainda existe discriminação no Brasil. Sim, sim, você já ouviu esse argumento. Dito assim, parece à toa. Mas fundamentado como está neste livro, jamais.

Há um capítulo sobre as origens da one-drop rule, a incrível classificação racial americana que determina que um sujeito com 1/32 de sangue negro seja catalogado como negro: paradigma que tem suas origens no horror puritano ante a mistura, depois curiosamente adotado pelas suas vítimas. Risério manda ver, sem floreios acadêmicos e sem medo: Os EUA são o único país do mundo em que o filho de um preto com uma branca é preto ... Estranho é que os norte-americanos estranhem que o resto do mundo não classifique pretos e mulatos do mesmo modo que eles. Falam aqui a cegueira e a arrogância imperialistas de sempre (p. 94). Daí Risério emplaca uma análise sobre a “morte dos deuses” nos EUA, a completa ausência de sobrevivências africanas entre os negros americanos, do tipo visto em qualquer esquina de Salvador ou Havana (mostra-se como a criatividade negra nos EUA foi rapidamente canalizada para a criação de um cristianismo negro). Na seqüência, Risério desmonta, um por um, os argumentos dos racialistas binários, que estudam o Brasil com o paradigma americano na cabeça, como Peter Blanchard ou Jacques D'Adesky.

É notória, para qualquer um que tenha lecionado nos EUA, a ânsia dos estudantes norte-americanos que se dedicam ao Brasil de escrever trabalhos de “crítica ao mito da democracia racial”. É um pouco constrangedor ver a reação deles quando você coloca a singela pergunta: “você vê esse mito onde mesmo?” Não há aprendizagem mais difícil para um estudante norte-americano que a descoberta de que não existe mito da democracia racial no Brasil; que no livro mais freqüentemente associado à idéia (Casa Grande e Senzala), essa expressão jamais aparece; que ninguém em sã consciência no Brasil diria que vive numa democracia racial. E que isso, obviamente, não implica que não exista racismo no país – só implica que as coisas são um pouco mais complexas, menos cartesianas. Hermano Vianna uma vez me disse que o que precisamos mesmo é de uma genealogia do mito do mito da democracia racial. Ou seja, uma explicação do porquê de tanta gente ter pensado que pensamos isso. Pois bem, a explicação chegou. Está em A utopia brasileira e os movimentos negros.

Há muito mais. Há um capítulo espetacular sobre o neopentecostalismo (que, na bela frase de Risério, partiu para cima do candomblé, decidido a detoná-lo em sua cidade sagrada); há outro irretocável sobre a língua (onde Risério reflete sobre o tremendo paradoxo de que um militante do movimento negro censure alguém por usar a palavra batuqueiro – vocábulo africano! -- ao invés de percussionista – termo latino!); há outro ainda sobre Cuba, que é talvez o que de mais erudito se escreveu sobre a ilha em português. Há também um capítulo sobre o futebol, onde se encontra uma citação de João Saldanha que comete uma injustiça que Risério não pescou: o Atlético Mineiro jamais impediu negros e mulatos de comporem sua equipe; o América e o Palestra Itália, sim. O Galo, jamais. Eu não poderia terminar esta resenha sem fazer a correção. A equipe campeã de 1915 já era formada por negromestiços.

Quem lê este blog desde 2005 sabe da minha defesa das cotas raciais. O Biscoito Fino e a Massa não apaga posts. O que eu pensava sobre as cotas raciais em 2005 está aqui. O que penso hoje, bem, deve ter ficado claro acima. É maravilhoso poder mudar de idéia, convencido por um argumento superior. Evoé, Risério.

Texto de Idelber Avelar em

http://www.idelberavelar.com/archives/2008/01/antonio_riserio_a_utopia_brasileira_e_os_movimentos_negros_1.php

Paim e Risério

Discutir e condenar o racismo emergente

Antonio Paim

Entre nós, a discussão substantiva de certos temas deixa muito a desejar. Atribuo a circunstância a certa acomodação com o patrulhamento ideológico, vigente em áreas da universidade e instâncias do governo, notadamente da educação. Essa acomodação pode ter resultado de duas coisas: reconhecimento da inutilidade do gesto ou graças à "cortina de ferro" que se tem conseguido estabelecer em torno daquilo que incomoda.

Não parece muito difícil verificar que o patrulhamento hoje é igual ou maior do que o que existia em 1978, há 30 anos, portanto, quando a censura a um texto de Miguel Reale, na PUC do Rio de Janeiro, provocou grande celeuma, refletida no título do livro que editei, reunindo artigos dos dois lados - Liberdade Acadêmica e Opção Totalitária: um Debate Memorável (Artenova, 1979). Desapareceu mesmo foi a discussão pública.

Chamo a atenção para esse aspecto com a intenção de evitar que se construa uma cortina de silêncio em torno das teses apresentadas por Antonio Risério em A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros (Editora 34, 2007). Acham-se extremamente bem documentadas e são as seguintes: os atuais movimentos negros renegaram a tradição da abordagem do assunto, que, no Brasil, estava centrada na questão da cor. O máximo que se pretendeu nessa matéria consistiu em recomendar o branqueamento, que não deixava de ser uma capitulação diante da mistura, da mescla, da miscigenação. Mais importante que essa advertência é a comprovação de que se trata simplesmente de macaquear modelo alienígena.

Transcrevo: "Não devemos desconhecer a realidade em que nos movemos. Não devemos ceder à tentação das fantasias fáceis, dos truques ideológicos, dos artifícios jurídicos, dos maniqueísmos simplificadores. Não devemos nos contentar com a transposição mecânica, para a realidade sociorracial brasileira, de discurso político-acadêmico em vigor nos EUA, cujas história, formação e situação são radicalmente dessemelhantes da nossa experiência como povo e nação. Pelo contrário: temos de recusar o imperialismo cultural norte-americano, que pretende universalizar os seus modelos e os seus particularismos. E temos de partir de nós mesmos. É por isso que insisto que não temos nenhuma forte razão para substituir o rico espectro cromático brasileiro pelo rígido padrão racial norte-americano - ainda mais que, nos EUA, cresce a mobilização em favor do reconhecimento social da existência de mestiços, com um número cada vez maior de pessoas reivindicando a inclusão da categoria mixed-race no censo (e no senso) da nação. De outra parte, acho que não devemos perder muito tempo fazendo essas comparações.

Esclareçamos as coisas básicas e, depois, o melhor é deixar os EUA de lado - e nos concentrarmos em nossos muitos e urgentes problemas. Mas o certo é que ninguém vai entender o Brasil se não encarar, em toda a sua abrangência e complexidade, os fenômenos fundamentais da mestiçagem e do sincretismo" (edição citada, pág. 411).

Risério procurou reconstituir toda a discussão em torno da escravatura, inclusive a noção (perdida) de que a sua aceitação não se limitava à "classe dominante", sendo inclusive prática existente e reconhecida entre os próprios escravos. Essa recuperação se estende ao movimento abolicionista. A contribuição dos africanos à nossa civilização se acha suficientemente valorizada, sem embargo da ênfase na falta de sentido de deixar de proclamar que a descendência reconhece (e proclama) ser brasileira.

Detém-se também no que denominou "movimentos negros hoje", buscando recuperar antecedentes imediatos esquecidos. A transição da tradicional classificação da população, como sendo de cor, para denominá-la "negra", se encontra fartamente documentada e discutida. Denuncia com propriedade a falácia de seus defensores ao afirmar que estariam passando do "biológico para o político" como "artifício ideológico para neutralizar ou encobrir o fato genético, a mistura de genes". A conclusão é a seguinte: "O racialismo neonegro, que vinha há tempo conseguindo algum espaço no governo federal, deixou o entrincheiramento burocrático e se instalou abertamente na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, desde a posse de Lula.

"A substituição do nosso comportamento tradicional pelo modelo norte-americano introduz em nosso meio postura nitidamente racista. Não se trata, como adverte Risério, de negar a existência de preconceito entre nós. Mas de destacar que corresponde a preconceito de cor, condenável enquanto convicção individual. À sociedade compete impedir que se transforme em discriminação, que só poderia resultar de uma ação coletiva, o que, aliás, nunca houve no País. Não se tem notícia da existência de algo parecido com a norte-americana Ku Klux Klan.

O que me parece mais grave no racismo de tais movimentos consiste em que as políticas que têm conseguido obter correspondem a equívoco funesto. A médio e longo prazos, trarão prejuízos definitivos tanto a instituições como a indivíduos. É óbvio que a obtenção de títulos acadêmicos, mediante ingresso na universidade por meio de cotas, disseminará indevidamente a pecha de incompetente a pessoas que, sendo bem dotadas, poderiam alcançá-los sem benesses. Quanto ao acesso à universidade dos que, por dificuldades econômicas, não tiveram condições de se preparar de forma a enfrentar a competição, a política adequada consiste em proporcionar-lhes bolsas que lhes permitam ingressar pela porta da frente.

Antonio Paim é presidente do Conselho Acadêmico do Instituto de Humanidades. Site: http://www.institutodehumanidades.com.br/

Livro na net

oi, por acaso achei o livro do Riserio na net. quem quiser ler além dos dois capítulos que selecionei, vá em
http://books.google.com.br/books?id=W-fYKx73-wcC&pg=PA15&lpg=PA15&dq=A+utopia+brasileira+e+os+movimentos+negros+cr%C3%ADtica+Ris%C3%A9rio&source=bl&ots=UBcqu_mPj7&sig=h_P5_xa4FcVT8xENno22mxTbilw&hl=pt-BR&ei=2Ei5Sob9NcS_tgeQrcX0Dg&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1#v=onepage&q=&f=false

Texto sobre livro de Risério

A sedução da raça

Abraham Lincoln será sempre lembrado como o presidente que suprimiu a escravidão nos Estados Unidos. Mas ele, como tantos outros na mesma época, era um defensor do "retorno à África" dos negros americanos. Em 1862, perante um grupo de negros que convocou à Casa Branca, disse: "Vós e nós somos raças diferentes. Pouco importa se isto é verdadeiro ou falso, mas o certo é que esta diferença física é uma desvantagem mútua, pois penso que muitos de vós sofrem enormemente ao viver entre nós, ao passo que os nossos sofrem com a vossa presença."

Quase um século mais tarde, Davis Knight, um rapaz do Mississipi, foi condenado à prisão por ter violado a lei que proibia a miscigenação. Para condená-lo, o Estado provou algo que ele desconhecia: uma de suas bisavós fora escrava, quando criança, e portanto ele tinha "sangue negro", mesmo que em proporção inferior a 1/16 avos.

Os dois eventos estão em A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros, de Antonio Risério, um daqueles raros livros para os quais cabe o adjetivo essencial. São 16 ensaios articulados por um cabo de aço que é a revolta intelectual contra a importação das políticas raciais americanas. Nos EUA, a regra da "gota de sangue única" divide a sociedade em raças que são, por definição, puras. No Brasil, os movimentos "neonegros", como os define Risério, engajam-se na invenção de um país inexistente para imitar o modelo americano, fabricando a raça nas leis com a esperança de incuti-la nas consciências.

Pureza racial. O ideal ariano, objetivamente contraditório com as mestiçagens práticas e simbólicas de um mundo de fluxos acelerados, só pode existir pelos meios da interdição ofi cial, como no Mississipi do passado recente, ou da classificação racial estatal, como pregam os racialistas no Brasil. Na apresentação de um livro do antrópologo da USP Kabengele Munanga, alerta-se para "os prejuízos que a mestiçagem vem causando ao negro no Brasil". A melodia da raça pura é a estrela fixa na trajetória aparentemente paradoxal de Abdias do Nascimento, ícone dos movimentos negros brasileiros, que bateu ponto no integralismo, ergueu a bandeira do nacionalismo progressista e da "democracia racial" e, depois de uma estadia nos EUA, converteu-se em porta-voz iracundo das atuais políticas racialistas. Risério insere cada coisa no seu contexto histórico, desarmando os rasos discursos ideológicos dos intelectuais "neonegros".

A escritura de Risério é uma declaração de amor ao Brasil, mas de um amor isento da paixão cega que tolda a crítica. Ele não nega o racismo: pelo contrário, identifica a sua presença intersticial, difusa e abrangente. Sobretudo, evidencia a diferença crucial entre o "nosso" racismo e o "deles" (o dos EUA). Aqui, o racismo frutificou como programa de branqueamento; lá, como congelamento oficial e cultural da separação entre raças. Mas o "nosso" programa de branqueamento fracassou, estilhaçando-se de encontro à mestiçagem. Como revelam os dados censitários, a mestiçagem brasileira tende a eliminar tanto os "negros" quanto os "brancos", dinamitando as bases sociais das políticas de raça. Os intelectuais "neonegros" e os movimentos que os seguem representam uma resposta reacionária a esse processo: uma tentativa de restauração do conceito anacrônico de raça.

Na apresentação da obra, Risério reclama um honesto debate de ideias. O seu livro inspirado merece coisa melhor que os previsíveis insultos dos fanáticos da raça e os encômios vazios dos aduladores.

E, de fato, há nele algo fora do lugar: aqui e ali, a lâmina de sua crítica perde o corte, enredando-se na armadilha do pensamento racial. Dessa armadilha, emerge um mestiço definido como objetividade biológica, isto é, como entidade pré-política, amparada no intercâmbio genético e nas profundezas da cultura. Esse mestiço "natural", uma figuração antiga do povo brasileiro, remete o debate de volta para o túnel romântico da ancestralidade, que é o campo de ação dos racialistas. Não se trata de negar a extraordinária amplitude do intercâmbio genético no Brasil, mas de insistir naquilo que Gilberto Freyre já havia registrado: somos todos mestiços, independentemente de nossas árvores genealógicas, pois é assim que nos enxergamos e definimos.

Wolfgang Gabbert sugere traduzir a etnicidade como um fenômeno de diferenciação social no qual os atores escolhem marcadores culturais ou fenotípicos para distinguir a si próprios dos demais. Isso significa que a etnia, tanto quanto a nação, é uma "comunidade imaginada" - e que ela surge na instância política. A "raça pura" não existe nos EUA (ou, em geral, no mundo), mas pode ser inventada de modo eficaz pela regra da "gota de sangue única". A divisão bipolar do Brasil em "brancos" e "negros" contraria a biologia e nossa experiência histórica - mas pode ser fabricada por um Estado que se engaja na classificação étnica dos brasileiros e na imposição de leis raciais.

Risério fecha os olhos para esse perigo real precisamente por acreditar demais nas permanências da biologia e da cultura. O Brasil não é os EUA, nem a África do Sul ou Ruanda. Mas a mestiçagem é um plebiscito cotidiano, não um talismã que nos protege da sedução da raça e do cortejo de violências que sempre a acompanha.

Jorge Demétrio Magnoli, é sociólogo, doutor em geografia humana pela USP, integrante do Grupo de Análises de Conjuntura Internacional da USP (Gacint) e colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

em http://desafios2.ipea.gov.br/003/00301009.jsp?ttCD_CHAVE=11108&btImprimir=SIM

Dica

Pessoas, leiam as entrevistas de Risério, concedidas na época do lançamento do livro A Utopia brasileira e os movimentos negros, que discutiremos amanhã.
Em http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI2696371-EI6608,00-Uma+entrevista+um.html
e em http://www.idelberavelar.com/archives/2007/11/antonio_riserio_a_utopia_brasileira_e_os_movimentos_negros.php

abrs

Aviso

Pessoas, os textos do mês de outubro já estão em nossa pasta na xerox.
abrs, leandro

terça-feira, 8 de setembro de 2009

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Eis a entrevista

“Fui ao banheiro da UFBA e vi a suástica na parede’

Pingue-pongue / Paul Gilroy

Leandro Colling

Correio da Bahia, 08/08/2000, caderno Folha da Bahia.

Professor de Sociologia e Estudos Afro-americanos da Yale University (Estados Unidos), Paul Gilroy, 44 anos, esteve em Salvador, no final do mês passado, participando do VII Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic). Além de palestrar, ele também lançou aqui o seu mais novo livro Against race (416 páginas, U$29,95). Gilroy ficou conhecido internacionalmente com o livro The black atlantic (280 páginas, U$14,95). Ambos foram editados pela Harvard University Press e podem ser adquiridos pelo site www.hup.harvard.edu.

Nesta entrevista, traduzida pela professora Liv Sovik, ele retoma algumas das suas preocupações como a presença do fascismo na sociedade contemporânea, a redução dos negros a meros símbolos, a validade da crítica ao pensamento de Gilberto Freyre.

Folha - Gostaria de começar repetindo uma pergunta que a professora Luiza Bairros, ligada ao movimento negro da Bahia, fez após a sua palestra no Congresso da Abralic. O senhor sugeriu uma mudança de ênfase no conceito de diáspora, não apenas relacionando-o com a idéia de movimentação de pessoas. Qual é a aplicabilidade do conceito para os movimentos negros do Brasil?

Gilroy - O conceito de diáspora tem maior utilidade quando é mais ligado à história da violência e terror. A visão mais escolástica o vê como sinônimo de viagens e produz uma inocência que, para mim, é profundamente preocupante. É muito fácil somatizar o deslocamento se você está numa situação confortável. Na intervenção que ela fez, enfatizou a elasticidade do conceito. Eu acho que a elasticidade é um dos motivos pelos quais vale a pena brigar por esse conceito. O que me interessa é a forma em que resistem as inclinações disciplinares e autoritárias dos que querem construir a nação. Mesmo quando eles têm boas intenções, acabam envolvidos em outras dinâmicas. No momento em que o nacionalismo insurgente se torna um nacionalismo governamental, está aí um umbral que precisamos olhar com cuidado. Porque o nacionalismo, em todas as suas formas, é um conjunto de patologias.

F - Na palestra, o senhor falou que essa mudança de ênfase do conceito de diáspora pode interromper a lógica daquele que tem o poder de determinar a identidade cultural. Como isso pode ocorrer?

PG - Existem diversas camadas nesse processo. A primeira é a circulação das pessoas, em geral relutantemente. É uma viagem forçada e por obrigação. Em segundo lugar, está a circulação de culturas materiais. Os objetos, à medida que circulam, podem transcender o seu estatuto de simples ou meras mercadorias. Em terceiro lugar, temos a circulação de idéias e mentalidades, a sensibilidade com relação ao mundo natural, externo e interno. Todas essas camadas contribuem com esse processo. E, depois, entram os processos tecnológicos, os complexos tecno-culturais promovendo diferentes padrões ou modelos de solidariedade. O meio acadêmico se identifica muito melhor com o movimento de culturas textuais do que com outros complexos tecnológicos e as formas em que a vida das pessoas pode se conectar.

F - Ao falar da terceira camada desse processo, lembro do seu novo livro, Against race, onde o senhor defende que a mídia reduz as pessoas negras a meros símbolos. O senhor poderia desenvolver esta afirmação? Em que segmento da mídia, o senhor vê isso com mais ênfase?

PG - Quando eu escrevi esse livro, estava pensando na revolução fascista política dos anos 30. Eu vejo esse momento como uma inovação primária política. Uma das formas em que isso se registra é na discussão, já antiga, chamada de estetização da polícia. Eu queria desenvolver essa discussão tomando outro rumo. Não como a política é fruto do ser espectador e da diversão em massa, mas rumo à presença dos significantes icônicos. Os símbolos destilados que são parecidos com esses planetas pesados que nós conhecemos, onde a matéria é tão densa que uma colherinha de chá já fura a terra. O surgimento destes significantes icônicos está ligado com a proibição da fala que os regimes autoritários e totalitários exigem.

F - O senhor poderia dar um exemplo?

PG - O símbolo da Nike vira um choque posterior ao da suástica. Esse aspecto de associação se dá através das rotinas da cultura da empresa. Me interessei em saber o que acontece com o corpo do negro nessas circunstâncias. Para tomar um exemplo óbvio, que não é o de Pelé, cito a figura de Michel Jordan. Eu sei que há algumas resistências a essas questões aqui, mas eu sei que ainda estão presentes. Se você compra a roupa com a grife dele, a logomarca é uma imagem dele pulando no ar com uma bola na mão. Isso torna-se um ícone em si mesmo. Eu queria entender como essa mentalidade empresarial tratou desta política identitária. A necessidade de saber e ter certeza de quem se é em circunstâncias que produzem uma ansiedade em torno de quem se é. Isso foi colonizado por interesses empresariais.

F - Então, o negro se transformou apenas num símbolo de vitalidade e isso também tem importância, mas não uma importância substancial?

PG - Na história do pensamento da raça, que divide claramente os atributos do corpo com os atributos da mente, aos negros foram delegados os atributos do corpo há muito tempo. Mas o diferente é que neste momento pós-moderno, a atividade corporal adquiriu um novo prestígio que atravessa culturas. Eu já observei da janela do quarto do hotel (ele estava hospedado na orla da Barra), os cidadãos privilegiados que estão fazendo exercícios na academia ali em frente. Esta é a cena primal do pós-moderno. É diferente, me parece, do praticar capoeira na praia.

F - No seu novo livro, o senhor também fala que o poder de sedução do fascismo não morreu com o fim dos fornos na Alemanha. Onde o senhor identifica o fascismo com mais força?

PG - Quando eu fui ao banheiro na universidade (UFBA), vi uma suástica na parede. Eu sei que vocês têm aqui um movimento neonazista pequeno. Quando perguntei a respeito, alguém me falou que queriam deportar os judeus, homossexuais e outras pessoas do Nordeste. Me pareceu que não iria sobrar mais ninguém. Eu não estou tão preocupado com as pessoas que colocam um crachá com a sua filiação ao fascismo dos anos 30, ou anunciando isso com uma linguagem política. Estou interessado nas pessoas que repetem os hábitos, os gestos, a solidariedade e as hierarquias como a pureza daquela política, sem dizer que são membros daquele grupo. Mesmo as pessoas que foram oprimidas podem ser vulneráveis a essa sedução. Essa é uma mímese muito perigosa deste poder. Podemos ser vítimas de manhã e, à tarde, podemos ser quem realmente aplica este mesmo terror. Isto tem a ver com o meu argumento em torno da falta ética em torno do nosso anti-racismo. A história do sofrimento não pertence apenas às vítimas e seus dependentes, mas tem um significado maior. Se as pessoas avançam em boa fé, podem ousar lançar mão disso e serão julgadas a partir daí, a partir do que fazem com a sua história.

F - Na palestra e também no novo livro, o senhor disse defender a aceleração da morte da raça. Como essa proposta repercute entre os próprios negros, depois de todo um movimento que tenta a afirmação da raça?

PG - Não me interessa tanto a morte da raça quanto a morte do racismo. Isso é o mais importante. Eu acho que podemos trabalhar melhor contra o racismo quando nós não antagonizamos a diferença racial. Existe um argumento histórico também. Depois da revolução da biotecnologia, e o surgimento do que na palestra eu chamei de biocolonialismo, temos um patrimônio em nossas assinaturas do nosso DNA. Não acho que a definição de raça do Século XVIII vai sobreviver a este encontro. Não implica que a ciência vai desmontar o racismo para nós, mas nos lembra que o discurso racial muda com o tempo e que, com a biotecnologia e o biocolonialismo, ele está passando por uma grande mudança. É possível que as aspirações eugênicas que acompanharam este movimento nostálgico vão nos dar saudades da época da raça.

F - Ainda é importante fazer a crítica a Gilberto Freyre sobre a miscigenação e responsabilizar ele pela criação do mito da democracia racial no Brasil?

PG - Como forasteiro, eu observo que este mito permite que a burguesia não se sinta nada pressionada sobre o racismo que existe no Brasil. Até que este recurso não exista mais, esta crítica terá que ser feita. Mas é uma crítica que não deve ser descartada inteiramente porque é o nosso alerta de padrões ou modelos de interdependência que ainda são muito importantes. A negrofobia e a negrofilia podem co-existir.

F - É a primeira vez que o senhor vem ao Brasil? Quais as suas impressões sobre Salvador?

PG - Sim, é a primeira vez. Há muito tempo que eu queria vir, mas seria errado vir sem ter um ponto de diálogo. Eu queria ouvir o que as pessoas estão dizendo. As impressões são um pouco misturadas, mas chamou a atenção a ambivalência de um Pelourinho disneyficado. Na palestra, eu quis dizer que o Pelourinho não era um lugar de memória da maneira que eu esperava. É estranho quando você vê o material turístico que nós recebemos aqui, como visitantes privilegiados, e a palavra escravidão nunca ser mencionada. Nós somos informados que a indústria açucareira teve um grande boom no Século XVIII. Me parece que a incapacidade de falar a palavra escravidão não é um bom sintoma.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Gostei de postar as fotinhos




















Adil e Bhabha

Para ajudar a entender Bhabha

Hibridismo e tradução cultural em Bhabha

SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. In: ABDALA JÚNIOR, Benjamin (org). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo & outras misturas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. P. 113-133.

Aline de Caldas[1], Dyala Ribeiro[2] e Gisane Santana[3]

O autor propõe uma leitura do conceito de hibridismo a partir dos textos teóricos do crítico pós-colonial Homi K. Bhabha. Lançando seu olhar de membro da elite local da sociedade indiana - colonizada pelos ingleses -, Bhabha explica o sentimento de superioridade em relação aos colonizados e, de inferioridade em relação aos colonizadores como sendo a experiência da ironia, na qual dois sistemas de valores e verdades se relativizam, se questionam, se sobrepõem, fazendo com que a duplicidade e a ambigüidade sejam fortes características do hibridismo.

Bhabha confrontou tentativas de escritores, tanto coloniais como colonizadores, em descrever o sujeito colonial. Assim, refletiu sobre que aspecto estava em questão: a linguagem utilizada para representar o sujeito ou a própria noção de sujeito (identidade). Partindo do desconstrucionismo, Bhabha “valoriza o hibridismo como elemento constituinte da linguagem, e, portanto da representação” (p. 114), o que implica na impossibilidade de se pensar uma descrição ou discurso autêntico sobre esse sujeito. Assim, qualquer tentativa de representação é híbrida por conter traços dos dois discursos, num de jogo de diferenças, no qual a busca por uma autenticidade é vista como infecunda.

O autor coloca duas metodologias utilizadas pelas literaturas coloniais para analisar a relação entre colonizado e colonizador: a análise de imagens – “vista como reflexo ou expressão de um conteúdo (o referente) previamente conhecido e fixo” (p. 115) – e a análise ideológica, cujo “conceito chave é a clausura ideológica, o processo pelo qual uma dado texto reprime ou desloca uma ‘contradição” ideológica” (p. 116).

Sugerindo uma idéia de literatura enquanto prática ou processo discursivo, Bhabha atenta para o espaço entre o ver e o interpretar, chamando-o terceiro espaço - o interstício entre significante e significado do qual, considerando o contexto sócio-histórico e ideológico do usuário da linguagem (o locus da enunciação), se pode ter visibilidade do hibridismo.

Com base no trabalho de Fanon, Bhabha destaca três pontos relevantes para a construção da identidade em contextos culturais. O primeiro determina que é necessário existir para, ir em direção a e ter uma ‘relação de desejo’ para com uma alteridade, um outro externo. O segundo ponto, chamado cisão, é caracterizado pelo desejo, por parte do colonizado, de alcançar a posição de superioridade do colonizador, sem, contudo, se desligar de sua condição. O terceiro aspecto diz respeito ao processo de identificação, fazendo surgir uma ‘imagem de identidade’, um projeto, a partir do qual o sujeito sofrerá tentativas de transformação. Assim, será imputado a vestir uma máscara, que deixa uma lacuna (espaço intersticial e relacional) entre a imagem e a pele, não permitindo uma ‘imagem autêntica’.

Lynn Mario de Souza explica que, para Bhabha, colonizado e colonizador, fazem uso de uma tática chamada mímica, a partir da qual se constrói uma imagem persuasiva de sujeito, com o objetivo de “apropriar-se e apoderar-se do Outro” (p.121). Dessa forma, a identidade, sob a perspectiva do hibridismo, não é estanque, sempre remete a uma imagem, uma espécie de máscara, um mito fundacional. Sob o ponto de vista psicanalítico, Bhabha trabalha essa questão a partir do conceito de fetiche, uma espécie de fantasia que afirma uma idéia de totalidade (em relação à identidade) e tenta camuflar a percepção da diferença, da ausência, criando o estereótipo no intuito de negar a multiplicidade e assegurar a pureza cultural.

Souza diz que Bhabha defende um novo conceito de cultura, considerado enquanto “verbo” e não mais como “substantivo”, híbrido, dinâmico, transnacional – gerando o trânsito de experiências entre nações - e tradutório – criando novos significados para símbolos culturais. Este conceito está ligado à questão da sobrevivência, quando os deslocamentos põem em choque diferenças culturais. Assim, o hibridismo vem enfatizar que “culturas são construções e as tradições, invenções” (p. 126), e que, quando em contato, criam novas construções desterritorializadas.
Assim, ao se apropriar da linguagem, Bhabha procura enfatizar a construção do significado pela interpretação (ou ressignificação, conseqüente da subjetividade atribuída à existência de espaços intersticiais), negando a falsa idéia de transparência, homogeneidade e considerando a necessidade de historicizar e contextualizar o momento da enunciação.

em http://www.uesc.br/icer/resenhas/hibridismo_e_traducao_em_bhabha.htm

domingo, 30 de agosto de 2009

Para alimentar nossas discussões

Riquezas são diferenças

Folha de São Paulo, 07/01/92

Muita estupidez e preconceito se têm lido nas páginas dos jornais, seja na opinião dos próprios jornalistas, seja na declaração de pessoas do meio artístico musical, tendo por objeto a cor da pele de Michael Jackson.

Não quero falar aqui da sua música, que continua exercendo o caminho natural de sua genialidade; nem do espaço poderoso que ela ocupa no mundo todo. Quero falar da clareza de Michael Jackson. Mesmo que para isso eu tenha de aceitar a condição da imprensa em geral, que tomou essa questão como um escudo para não comentar com o devido respeito seu último disco.

Michael Jackson teve a pele negra. Ficou mulato em Thriller, clareou mais em Bad e agora aparece completamente branco em Dangerous. O mal-estar que isso vem causando é assustador, nessa beirada do ano 2000. Que ele "negou a sua raça", "se corrompeu", "virou um monstro", entre ofensas piores.

O pior ataque dessa onda se leu numa matéria assinada por Sérgio Sá Leitão, na seção denominada "Fique por dentro" (?), no Folhateen de 9/12/91, que, além de desprezar sem nenhum fundamento Dangerous ("O fundamental em Michael Jackson já não é mais a música — como o era na época de Thriller, seu álbum-emblema") e lamentar a mudança de cor enquanto perda de identidade ("Com sua identidade diluída, falta também a Michael Jackson a legitimidade indispensável a qualquer astro da cultura pop"), começa (na manchete) e termina (na conclusão da matéria) com uma frase de efeito de uma agressividade despropositada: "Michael Jackson é o eunuco do pop". Tendo-se em conta a potência que ele representa, não apenas em seu som, mas também como fenômeno de massas no planeta, tal inversão só pode ser interpretada como fruto de ódio. Parece a indignação de um membro da Ku Klux Klan defendendo a pureza racial ameaçada por esse branco que não nasceu branco.

Brancos sempre puderam parecer mulatos, bronzear-se ao sol ou em lâmpadas específicas para esse fim, fazer permanente para endurecer os cabelos. Tudo isso visto com naturalidade e simpatia. Tatuagem, que é uma técnica predominantemente usada por brancos, pode. Até mesmo aquela caricatura do Al Johnson era vista com graça. Agora, o negro Michael Jackson entregar seu corpo à transcendência da barreira racial desperta revolta, reações de protesto e aversão.

O espaço da ficção é permissivo. Todo mundo acha bacana Raul Seixas haver cantado "Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante", ou haver existido uma banda chamada "Mutantes". Há um consenso na aceitação da promiscuidade racial de Macunaíma, como traço característico de nossa identidade antropológica. Agora, quando adentramos o campo da vida real as máscaras moralistas, racistas, preservacionistas da estagnação se mostram, contra a liberdade individual de se fazer o que quiser da própria pele.

É que Michael Jackson é um Macunaíma ao avesso. Se o anti-herói de Mário de Andrade faz de si a parábola da gênese das diferenças raciais no espaço ficcional, Michael Jackson representa, em carne e osso, a abolição dessas fronteiras. Mas parece que, mais de cem anos depois, o Brasil ainda não está preparado para aceitar a Abolição.

Os negros que estão condenando a mutação de Michael Jackson, insinuando ser ela fruto de inveja de uma suposta condição dos brancos, acabam na verdade chegando a um veredito semelhante ao do racismo branco que diz: "Como esse negro se atreve a usar a minha cor em sua pele?"Michael Jackson continua cantando com o mesmo swing de quando tinha a pele preta, e dançando cada vez mais lindamente aquela dança que influenciou milhares de negros no mundo inteiro. Ele ostenta a pele clara como quem diz "eu posso". E canta: "I'm not going to spend my life being a color". E faz de seu corpo a prova de que a questão racial vai muito além da cor da pele.

O corpo é para usar. O corpo é para ser usado. Michael Jackson está colocando seu corpo a serviço de um tempo em que a pessoa valha antes das raças, e o planeta antes das nações. Não se trata de extinguir as diferenças, mas de fundar radicalmente a possibilidade de trânsito entre elas. A miscigenação que se fez aqui (nesse país onde todos somos um pouco mulatos ou mamelucos), diacronicamente, durante séculos, faz-se sincronicamente nele.

Michael Jackson é preto e é branco. Não fala em nome de uma raça ou casta, mas encarna em si a diferença. Não é mais americano porque é do mundo todo ("Protection/for gangs, clubs,/ and nations/ causing grief in/ human relations/ It's a turf war/ On a global scale/ I'd rather hear both sides/ of the tale", canta em Black or White). O incômodo está justamente nesse exercício de liberdade. Ele não precisa explicar nada. As respostas estão todas na sua cara. Ou naquelas caras tão diferentes se transformando umas nas outras, no clip de Black or White."...Eu me tomo as estrelas e a lua. Eu me tomo o amante e o amado. Eu me tomo o vencedor e o vencido. Eu me tomo o senhor e o escravo. Eu me tomo o cantor e a canção. Eu me tomo o conhecedor e o conhecido... Eu continuo dançando... e dançando... e dançando, até que haja apenas... a dança" (Michael Jackson, em The Dance).

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Fotos

Depois de reler o texto de Fanon, de nossa aula de amanhã, fiquei com vontade de postar essas fotos aí.









Fanon







Aimé


quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Cronograma de atividades 2009.2

AGOSTO

12 – apresentação, discussão e elaboração do programa da disciplina, organização das atividades do semestre.
19 - texto introdutório sobre identidade e cultura. Ler WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis, Vozes, 2007, p. 7 a 72.
26 – algumas origens das opressões aos negros. Ler FANON, Frantz. O preto e a psicopatologia. In: Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008, p. 127 a 174.

SETEMBRO

2 – com e contra Fanon. Ler BHABHA, Homi K. Interrogando a identidade. Frantz Fanon e a prerrogativa pós-colonial. In: ______. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003, p. 70 a 104.
9 - continuação da discussão sobre identidade e raça/etnia. Ler GILROY, Paul. O atlântico negro como contracultura da modernidade. In: O atlântico negro. São Paulo: Editora 34, p. 33 a 100.
16 - Ler Hall, Suart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis, Vozes, 2007, p. 103 a 133 e HALL, Stuart. Que “negro” é esse na cultura negra?. In: Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik, Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco no Brasil, 2003, p. 335 a 349.
23 - Discussão sobre os aspectos teóricos e a política do movimento negro brasileiro. Ler texto RISÉRIO, Antonio. A utopia brasileira e os movimentos negros. São Paulo: Editora 34, p. 17 a 67.
30 – Quito (a confirmar)

OUTUBRO

7 – Clacso (Conselho Latino-americano de Ciências Sociais) – Bolívia
14 - Discussões sobre auto-identidade. Ler GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2002, p. 9 a 69.
21 - Continuação. Ler GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2002, p. 70 a 103.
28 – com e contra Giddens. CUNHA, Eduardo Leal. Quem quer que seja você, qualquer que seja seu desejo. In: Indivíduo singular e plural. A identidade em questão. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2009, p 127 a 167.

NOVEMBRO

4 – Gênero, identidade e psicanálise - MITCHELL, Juliet. Freud e Lacan: teorias psicanalíticas da diferença sexual. In: Psicanálise da sexualidade feminina. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1988. p. 27-54.
11 - Problematizando o conceito de gênero e o feminismo de segunda onda. Ler BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p. 17 a 60.
18 - A teoria da performatividade de gênero. Ler BUTLER, Judith. Críticamente subversiva. In: JIMÉNEZ, Rafael M. Mérida. Sexualidades transgresoras. Una antología de estudios queer. Barcelona: Icária editorial, 2002, p. 55 a 81.
25 – Pensando as políticas de gênero. Ler MOUFFE, Chantal. Feminismo, cidadania e política democrática radical. In: Debate Feminista. Ed. Especial Cidadania e Feminismo, México / São Paulo, 1999, p. 29 a 47 e BONDI, Liz. Localizar as políticas de identidade. In: Debate Feminista. Ed. Especial Cidadania e Feminismo, México / São Paulo, 1999, p.245 a 265.

DEZEMBRO

2 - GAMSON, Joshua. Deben autodestruirse los movimientos identitarios? Un extraño dilema. In: JIMÉNEZ, Rafael M. Mérida. Sexualidades transgresoras. Una antología de estudios queer. Barcelona: Icária editorial, 2002, p. 141 a 172.

Obras panorâmicas básicas – leituras pressupostas

Sobre identidade:
BAUMANN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002.

Sobre identidade, gênero e sexualidade:
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2007.
LOPES, Denílson. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte, Autêntica, 2004.
LOURO, Guacira Lopes (org.) O corpo educado – pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001

Sobre psicanálise, identidade e gênero:
BIRMAN, Joel. Cartografias do feminino. São Paulo: Editora 34, 2003.
KEHL, Maria Rita. A mínima diferença. Rio de Janeiro, Imago, 1996
PEIXOTO JUNIOR, Carlos Augusto. Singularidade e subjetivação. Ensaios sobre clínica e cultura. Rio de Janeiro: 7 Letras/Editora PUC-Rio, 2008.